domingo, 17 de maio de 2009

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"LIVRO - eu te lendo" (Lygia Bojunga) 2ª leitura compartilhada

Eu tive seis casos.
Casos de amor, eu quero dizer.
E, pra mim, um caso de amor é coisa de envolvimento mui¬to intenso.
Eu namorei bastante; flertei à beça; experimentei casamen¬to; mas casos mesmo foram seis. (E o bom é que eu não estou livre de outro ... )

Outra coisa boa: eu sempre falei neles todos com muito entusiasmo, e me sentindo muito à vontade. Feito eu queria fa¬lar hoje aqui. Quer dizer, todos não: teve um que eu acabei escondendo. E mesmo hoje, que eu vou falar nele, eu vou contar o milagre mas não vou dar o nome do santo.

Eu tinha sete anos quando ganhei de presente um livro do Monteiro Lobato chamado Reinações de Narizinho. Um livro grosso assim. Só de olhar pra ele eu me senti exausta. Dei um dos muito obrigada mais sem convicção da minha vida, sumi com o livro num canto do armário, e voltei pras minhas histórias em quadrinho.

Eu estava superfresquinha de recém ter aprendido a ler, e andava às voltas com história em quadrinho. Era um pessoal legal, eu gostava deles, mas, sei lá! era uma gente tão diferente da gente. Eles moravam nuns lugares que eu nunca tinha ouvido falar; eles tinham cada nome tão estranho (às vezes até acabando com h!), como é? como é mesmo que se diz esse Flash? Fla¬chi? Flachi Gordon? E se eu contava, por exemplo, eu hoje li que o Mandrake perdeu a cartola, tinha sempre alguém por per¬to aprendendo inglês pra querer mostrar que sabia mais que eu: não é assim que se diz, sua boba, é Mandreike.

Mandreike??

Comecei a achar que aquela história de ler não era uma coisa descomplicada feito descascar uma laranja, pular uma amarelinha, cantar junto a música que tocava no rádio.

E se em vez de ler, liam pra mim, aí mesmo é que a coisa não se descomplicava: o meu pai e a minha mãe liam história pra mim numa coleção de livrinhos pra criança que tinha lá em casa, tudo impresso em Portugal, e cheio de infantas, estalagens, es¬copetas, arcabuzes, abadessas rezando vésperas, raparigas na roca a fiar ...
O quê? Como é?
Lê de novo? Que que é isso?
E quando diziam, é português, não é, minha filha? eu acha¬va tão esquisito! mas não é a língua da gente?
Era.

Bom, mas então esse negócio de ler era um troço bem cha¬to, não era não?

E aí o meu tio, que tinha me dado Reinações de Narizinho (e que era um tio que eu adorava), chegou lá em casa e quis saber, então? gostou do livro? Eu fiz uma cara meio vaga.

Passados uns tempos ele me cobrou outra vez, como é? já leu? Não tinha outro jeito: tirei o livro do armário, tirei a poeira do livro, tirei a coragem não sei de onde, e comecei a ler: "Nu¬ma casinha branca, lá no sítio do Picapau Amarelo ... " E quando cheguei no fim do livro eu comecei tudo de novo, numa casinha branca lá no sítio do Picapau Amarelo, e fui indo toda a vida outra vez, voltando atrás num capítulo, revisitando outro, lendo de trás pra frente, e aquela gente toda do sítio do Picapau Ama¬relo começou a virar a minha gente. Muito especialmente uma boneca de pano chamada Emília, que fazia e dizia tudo que vi¬nha na cabeça dela. A Emília me deslumbrava! nossa, como é que ela teve coragem de dizer isso? ah, eu vou fazer isso também!

Mas longe de imaginar que eu estava vivendo o meu primei¬ro caso de amor.

Lá em casa eles me viam tão entregue a esse livro, tão quie¬tinha num canto, só eu e o livro, que eles me deram, correndo, uma porção de Lobatos. Eu li; eu experimentei eles todos; eu curti. Mas Reinações de Narizinho tinha me dado um prazer tão intenso, que era pra ele que eu voltava sempre ao longo da mi¬nha infância. Esse livro sacudiu a minha imaginação. E ela tinha acordado. Agora ... ela queria imaginar.

Esse acordar da imaginação começou a mudar tudo. De re¬pente, já não me bastava cantar junto a música que tocava no rádio só repetindo as palavras e mais nada. Eu me lembro de uma música que eu cantava sempre, e que falava numa tal Maria abrindo a janela numa manhã de sol e laralalá não sei o quê, mas que, agora, eu cantava querendo imaginar a janela: era verde? tinha veneziana? E a Maria como é que era? ela era gor¬da, ela era magra, ela tinha uma franja assim feito eu?

Na hora de pular amarelinha, a pedra que eu ia jogar já ficava no ar; a minha imaginação imaginando: e se em vez de jogar a pedra assim, eu jogo ela assim?
Mas o que a minha imaginação queria mesmo era voltar pr'aquele mundo encantado que o Lobato tinha criado, e ficar imaginando o tamanho e a cor da pedrinha que a Emília tinha engolido (e que não era pedrinha coisa nenhuma, era uma pílula falante); e ficar imaginando que jeito eu ia dar pra me encontrar com a Dona Aranha costureira, que tinha feito o vestido de casamento da Narizinho, e pedir pra, na hora do meu casamento, ela fazer o meu vestido também.

Imaginando. Imaginando. Mas tão longe de imaginar o que que é imaginar.

Eu não parei mais de ler.